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quarta-feira, novembro 07, 2007

Montanha e flor

- para Lorena Vianna

Quando veio a primeira tempestade, procurei não me abalar. Era o mais esperado, àquela altitude. A dissimulação que procurei acabou sendo pior, e pareceu-me que o vento veio dobrado. Me senti, naquela montanha, abandonado. Solidão é uma coisa, abandono outra. Vamos do começo.

Foi no fim de julho que terminei os preparativos para a viagem: martelo, pinos, cordas e todo o equipamento de escalada; uma barraca, pequena, só pra mim; nada de comida, nem de água, diziam que não era preciso (o que acabei por comprovar no caminho). Levei, também, meia dúzia de palavras em norueguês, escritas de susto em uma nota, um pedacico de papel que, eu já sabia, mais tarde teria de traduzir.

Fazia muito sol quando comecei a viagem. Quatro dias a cavalo, chegar até a montanha era difícil. Felizmente, essa caminhada correu como o planejado. E foi no dia quatro de agosto que alcancei o pé daquele colosso que sumia nas nuvens. Supersticioso que sou gritei, alto e para o alto, as palavras, em norueguês, que trazia naquele pedaço de papel (já as trazia de cor, tanto que as havia passado e repassado mentalmente durante o caminho). Para meu nervosismo, nada. Esperavam tradução. Gritei-as novamente, agora em português, e a montanha me devolveu uma brisa fresca que encheu meu peito e olhos de uma felicidade que há muito não experimentavam. Sorri, ainda um pouco sem graça. Era a minha permissão para começar a jornada.

O primeiro trecho não era tão íngreme, e foi bastante agradável. Uma grama de um verde fresco, tão fresco que até azulava, cobria esse pedaço da encosta. Não senti fome, sede ou frio. E nem muito menos cansaço. Fui subindo e subindo, e o tempo foi passando - algo que eu só podia acompanhar, inclusive, pelo movimento das nuvens lá no alto. Eu só olhava para o céu, a sorrir.

Um dia, não sei se por não olhar o caminho, topei com uma pedra. Ai, que dor! Não foi na minha retina, não sou poeta, mas lascou-me a unha do dedão do pé. Bom que me trouxe para ali. Então eu sentia ainda os sentimentos que me faziam humano, as minhas dores. Não reclamei, e fiz questão de que não se deixassem (estes sentimentos tidos por nós, muitas vezes, como negativos) embaçar por todo o êxtase que me levava. Não foi nada fácil: quem, em perfeito juízo, concordaria em ter suas dores a trazê-lo para a dura realidade? Todos, pelo menos os ponderados. Mas eu não me encaixo entre eles, estou apaixonado. A montanha me levava consigo e eu me deixara levar até então. Foi a topada com a pedra que me fez ver que, assim, eu não vivia o caminho, não do modo como gostaria.

Naquela noite montei minha barraca e acampei pela primeira vez. Não senti fome, nem frio. Meu pé doía, mas isso me fazia sentir humano. Dormi o suficiente para sonhar com uma flor.

Uma flor que estaria, até onde me lembrava, dentro de uma caverna, logo a reconheci. Era uma flor especial, não se sabia sua cor - ia mudando, de forma tão sutil que era impossível perceber, do amarelo ao vermelho, do vermelho ao amarelo. Sua pétalas desabrochavam em movimento contínuo. E eis que, pelo que vi em meu sonho, ela se encontrava no topo do monte, além das nuvens. Esta não mudava de tom, no entanto; era vermelha. De um vermelho inquieto, bravio, louco.

O sonho foi uma visão, tenho certeza. Veio em boa hora, inclusive: quando acordei senti todo o peso da minha displicência física do início da jornada e - depois de um mês - o caminho se tornava tanto mais inclinado. Pra cima, porque ali não havia santo que me ajudasse. A visão que tive daquela flor, ainda que um pouco turva, era o que me mantinha subindo.

Naquele mesmo dia precisei, pela primeira vez, do meu equipamento de alpinismo. Falta de experiência, machuquei minhas mãos. Pouco importava, na verdade, só acrescentei aqui para dar um tom dramático à narrativa. Porque nem tudo são flores, mesmo quando se está atrás de uma delas.

Passei uns dias dependurado, outros dormindo em patamares planos que a montanha me oferecia de tempos em tempos, sempre depois dos trechos mais árduos. Ela, inclusive, nunca me faltou. Reconheço até que cometi uma injustiça há algumas linhas: a montanha tem sido uma santa que ajuda pra cima.

O mais interessante é ver como, por mais que seja até um tanto óbvio, eu fico próximo da rocha nos paredões verticais. Posso senti-la pulsando contra o meu corpo, sinto seu calor, sinto que tem vida. Por muitas vezes fecho meus olhos, mas nunca é para não ver; a intenção, pelo menos, é sempre trazer para mim o que aprendo com a montanha.

Se você, leitor, espera que eu alcance o topo ainda nessa narrativa, esqueça. Não sei se jamais alcançarei, a própria existência de um topo é duvidosa. Mesmo que alcance um dia, não colherei a flor. Derramarei uma lágrima e me sentirei abençoado.

Passando esses dias dependurado, algumas vezes de cabeça para baixo, acabo me perdendo na figura daquela só flor enquanto objetivo e me esqueço da montanha como um todo, uma entidade que respira e pode, por muitas vezes, ser tão vermelha quanto as pétalas que se apresentaram em meu sonho. É falta de sensibilidade minha. A quem devo desculpas? Pois as peço.

Assim, a primeira tormenta, apesar de não ter me derrubado, me trouxe todos esses pensamentos. As tormentas existem e são da montanha. Percebi quando tentei me fazer de indiferente à tempestade, obcecado com a flor que havia visto dias antes, sem me dar conta de que suas pétalas não constituem um objetivo, longe disso. E se alguma outra tempestade vier mais forte e me derrubar, por mais doloroso que seja, tentarei ficar feliz, só de ter tido a oportunidade de viver a montanha.

Continuo a escalar - e procuro sentir o calor da rocha que, por ser tudo, menos um obstáculo, tanto me consola.

5 Comments:

Blogger Mandix said...

Ha, o melhor foi não ter o final esperado! hahahahaha

pra quê, né?

tá, na maioria das vezes eu faço questão do final, mas nesse caso vc fez a coisa certa, rapaz. pelo menos eu acho, né... *coçando a cabeça*

17 de novembro de 2007 às 01:09  
Blogger Sofia Rezende said...

Oi moço... te imitei e resolvi fazer um blog também. Eu tinha um mas acabei deletando por motivos chatos. Mas tem hora que é bom começar do zero. Seu blog ta bacana, depois visita o meu too.

20 de novembro de 2007 às 21:40  
Blogger A Line said...

Posso ler alegoricamente?

Beijos, adorei não ter o final da escalada, ia ficar esquisito e brega.

24 de novembro de 2007 às 17:07  
Anonymous Anônimo said...

Esse eu li no original ;P
e gostei muito, claro.
Não me liga até a prova.
Mentira, liga sim.

26 de novembro de 2007 às 13:33  
Anonymous Anônimo said...

Ah, e apesar de nao visitar seu blog com tanta frequência, quando venho devoro tudo.
Gosto muito.
Beijos

26 de novembro de 2007 às 13:35  

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