Eu vivia no vento. Andava na névoa, mergulhava no ar, tudo era vento. Se comia, comia ar; beber, só bebia neblina. O meu próprio corpo era uma densificação de vapor, e mesmo o sexo era nada mais do que um vento gostoso que me soprava as entranhas - de vapor. Mundo também não era muito diferente, não tinha água ou terra, só céu. Com seus ventos. Das nuvens eu fugia, fortes demais - e elas mesmas se isolavam de nós, se ajuntavam e tomavam grandes porções do azul. Mas não tinha problema, o céu era de todo mundo. Mesmo que uns e outros se matassem por um pedacinho maior, não dava em nada. Uns matavam, mas ninguém morria. Como eu, eram também vento e - me atrevo a pensar - eram o mesmo, ou parte dele. Por todo o globo sopravam, seguiam sempre a mesma direção e o mesmo sentido. Não há nem como pensar que eram muitos os ventos que aqui viviam.
Nas minhas andanças pelo mundo-vento, um dia em que estava meio chateado, entediado mesmo, me aproximei de um sopro que não conhecia. Era um tanto quanto frio, mas o mais quente que eu havia experimentado. Sua própria voz me enevoava aos ouvidos e me tocava profundamente, e me deixava confuso, sem saber se eu mesmo era vapor ou, se agora, era névoa, neblina, ou mesmo um pedacico de ar. Fui me ajuntando, ainda sem saber o meu estado, e viramos nuvem. Daquelas que sempre me faziam fugir. E aí entendi o por quê de elas serem tão aglomeradas - na verdade, aquelas que ocupavam um espaço imenso e eu achava que eram um monte, eram só duas. Sempre só duas. E descobri que as grandes, apesar de causarem mais medo, eram mais fracas, mais distantes de si mesmas.
Eu-nós agora era uma nuvem pequena, compacta, tão densa que fiz chuva.
Fiz tanta chuva que virei a própria chuva, virei água. E descobri que o mundo não era só vento, tinha água, só que era bem raro, difícil de ver. Mas agora eu era líquido, e corria, e tempestadeava, e molhava tudo quanto via. Subia aos céus, caía de novo, corria mais um pouco, sempre tocando algo que não conseguia atravessar, molhar ou me infiltrar. Por mais que tempestadeasse, que seguisse meu curso, sempre unido e compacto como nunca antes em estado de vento, havia aquilo ali que não me deixava correr tão livre, mesmo que não fosse uma barreira para nada. Porém, ainda era uma barreira - eu queria atravessar, molhar e me infiltrar. Nunca consegui. Me disseram outro dia que o nome disso, tão intransponível, é terra. Eu tocava a terra e não conseguia ser livre.
Mais ou menos por aí, depois de tanto tentar atravessar chão, piso, terra ou o que seja, me tornei salgado. Não pra ir pro mar, que não queria, mas porque me faltava essa infiltração. E sal é terra; se não posso tomar, pelo menos incorporo um pouco. Que erro! Logo me vi evaporando, perdendo o que tinha de água. Depois, em nuvem, comecei a me afastar, ventos sopravam de todos os lados e me arrancavam da minha tão segura densidade. Percorri céus, ainda em nuvem, sempre chuviscando o pouco de chuva que me restava. Em pouco tempo já não era mais nuvem, era vento de novo.
Agora, passou-se sei lá quanto, nem vejo mais água e, muito menos, terra. Minha vida, meu corpo, meu alimento, meu sexo, meu mundo agora é uma profusão de cores que eu nem consigo distinguir. Nem o vento eu tenho mais.